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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Fernando Pessoa e boas festas





Prezados amigos do blog "Transver o Mundo", ontem (15 de dezembro) fizemos 1 ano e 1 mês de existência. Aproveitando para celebrar também com o momento natalino e de fim de ano, presenteio a todos os internautas com uma bela sequência de poesias do grande Fernando Pessoa. Um abraço a todos e boas festas!

E viva Portugal!

Fernando Pessoa
 
I - Primeira Parte: Brasão
               Bellum sine bello.
          I. OS CAMPOS 
          PRIMEIRO / O DOS CASTELOS 
          A Europa jaz, posta nos cotovelos:
          De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
          E toldam-lhe românticos cabelos
          Olhos gregos, lembrando.
          O cotovelo esquerdo é recuado;
          O direito é em ângulo disposto.
          Aquele diz Itália onde é pousado;
          Este diz Inglaterra onde, afastado,
          A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
          Fita, com olhar sphyngico e fatal,
          O Ocidente, futuro do passado.
          O rosto com que fita é Portugal.
 
          SEGUNDO / O DAS QUINAS
 
          Os Deuses vendem quando dão.
          Comprase a glória com desgraça.
          Ai dos felizes, porque são
          Só o que passa!
          Baste a quem baste o que Ihe basta
          O bastante de Ihe bastar!
          A vida é breve, a alma é vasta:
          Ter é tardar.
          Foi com desgraça e com vileza
          Que Deus ao Cristo definiu:
          Assim o opôs à Natureza
          E Filho o ungiu.
 
          II. OS CASTELOS 
 
          PRIMEIRO / ULISSES 
          O mytho é o nada que é tudo.
          O mesmo sol que abre os céus
          É um mytho brilhante e mudo —-
          O corpo morto de Deus,
          Vivo e desnudo.
          Este, que aqui aportou,
          Foi por não ser existindo.
          Sem existir nos bastou.
          Por não ter vindo foi vindo
          E nos criou.
          Assim a lenda se escorre
          A entrar na realidade,
          E a fecundá-la decorre.
          Em baixo, a vida, metade
          De nada, morre.
 
          SEGUNDO / VIRIATO 
          Se a alma que sente e faz conhece
          Só porque lembra o que esqueceu,
          Vivemos, raça, porque houvesse
          Memória em nós do instinto teu.
          Nação porque reencarnaste,
          Povo porque ressuscitou
          Ou tu, ou o de que eras a haste —
          Assim se Portugal formou.
          Teu ser é como aquela fria
          Luz que precede a madrugada,
          E é ja o ir a haver o dia
          Na antemanhã, confuso nada.
 
          TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE
          Todo começo é involuntáario.
          Deus é o agente.
          O herói a si assiste, vário
          E inconsciente.
          À espada em tuas mãos achada
          Teu olhar desce.
          «Que farei eu com esta espada?»
          Ergueste-a, e fez-se.
 
          QUARTO / D. TAREJA
          As naçôes todas são mystérios.
          Cada uma é todo o mundo a sós.
          Ó mãe de reis e avó de impérios,
          Vela por nós!
          Teu seio augusto amamentou
          Com bruta e natural certeza
          O que, imprevisto, Deus fadou.
          Por ele reza!
          Dê tua prece outro destino
          A quem fadou o instinto teu!
          O homem que foi o teu menino
          Envelheceu.
          Mas todo vivo é eterno infante
          Onde estás e não há o dia.
          No antigo seio, vigilante,
          De novo o cria!
 
          QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES
          Pai, foste cavaleiro.
          Hoje a vigília é nossa.
          Dá-nos o exemplo inteiro
          E a tua inteira força!
          Dá, contra a hora em que, errada,
          Novos infiéis vençam,
          A bênção como espada,
          A espada como benção!
 
          SEXTO / D. DINIS
          Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
          O plantador de naus a haver,
          E ouve um silêncio múrmuro consigo:
          É o rumor dos pinhais que, como um trigo
          De Império, ondulam sem se poder ver.
          Arroio, esse cantar, jovem e puro,
          Busca o oceano por achar;
          E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
          É o som presente desse mar futuro,
          É a voz da terra ansiando pelo mar.
 
          SÉTIMO (I) / D. JOÃO O PRIMEIRO
          O homem e a hora são um só
          Quando Deus faz e a história é feita.
          O mais é carne, cujo pó
          A terra espreita.
          Mestre, sem o saber, do Templo
          Que Portugal foi feito ser,
          Que houveste a glória e deste o exemplo
          De o defender.
          Teu nome, eleito em sua fama,
          É, na ara da nossa alma interna,
          A que repele, eterna chama,
          A sombra eterna.
 
          SÉTIMO (II) / D. FILIPA DE LENCASTRE
          Que enigma havia em teu seio
          Que só gênios concebia?
          Que arcanjo teus sonhos veio
          Velar, maternos, um dia?
          Volve a nós teu rosto sério,
          Princesa do Santo Graal,
          Humano ventre do Império,
          Madrinha de Portugal!
 
          III. AS QUINAS 
          PRIMEIRA / D. DUARTE, REI DE PORTUGAL
          Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
          A regra de ser Rei almou meu ser,
          Em dia e letra escrupuloso e fundo.
          Firme em minha tristeza, tal vivi.
          Cumpri contra o Destino o meu dever.
          Inutilmente? Não, porque o cumpri.
 
SEGUNDA / D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL
          Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
          A sua santa guerra.
          Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
          Às horas em que um frio vento passa
          Por sobre a fria terra.
          Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
          A fronte com o olhar;
          E esta febre de Além, que me consome,
          E este querer grandeza são seu nome
          Dentro em mim a vibrar.
          E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
          Em minha face calma.
          Cheio de Deus, não temo o que virá,
          Pois venha o que vier, nunca será
          Maior do que a minha alma.
 
          TERCEIRA / D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL
          Claro em pensar, e claro no sentir,
          É claro no querer;
          Indiferente ao que há em conseguir
          Que seja só obter;
          Dúplice dono, sem me dividir,
          De dever e de ser —
          Não me podia a Sorte dar guarida
          Por não ser eu dos seus.
          Assim vivi, assim morri, a vida,
          Calmo sob mudos céus,
          Fiel à palavra dada e à idéia tida.
          Tudo o mais é com Deus!
 
          QUARTA / D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL
          Não fui alguém. Minha alma estava estreita
          Entre tão grandes almas minhas pares,
          Inutilmente eleita,
          Virgemmente parada;
          Porque é do português, pai de amplos mares,
          Querer, poder só isto:
          O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
          O todo, ou o seu nada.
 
          QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
          Louco, sim, louco, porque quis grandeza
          Qual a Sorte a não dá.
          Não coube em mim minha certeza;
          Por isso onde o areal está
          Ficou meu ser que houve, não o que há.
          Minha loucura, outros que me a tomem
          Com o que nela ia.
          Sem a loucura que é o homem
          Mais que a besta sadia,
          Cadáver adiado que procria?
Fonte: jornal da poesia: http://www.revista.agulha.nom.br/pessoa.html

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